Ser um negro
bem “comportado” e sucedido não vai te livrar do Racismo
Faz um tempo que espero uma
oportunidade de dar algum tipo de continuidade ao texto Alice no País dos Não-Racistas, então, quando me
deparei com o maravilhoso texto Nem Seu Cabelo Nem Seu Turbante Vão Te Livrar do Racismo,
aproveitei a oportunidade. Espero fazer jus ao lacre que é o texto de Joice
Berth.
Talvez um dos efeitos mais
perturbadores do racismo que impregna a nossa cultura seja o sentimento de
impotência que não-brancos apresentam diante desse complexo de inferioridade branco.
Diante dessa persistente depreciação de tudo que não tem raízes na Europa, para
que europeus – e descendentes – se sintam “os escolhidos”. Diante da constante
tentativa da branquitude de adiar o seu karma histórico
através da auto-afirmação virulenta.
Talvez um dos efeitos mais
nocivos do racismo seja o emolduramento das subjetividades negras em
estereótipos – identidades opressoras que limitam as maneiras pelas quais toda
a sociedade interpreta toda e qualquer pessoa negra. No livro O Negro
Brasileiro e o Cinema, João Carlos Rodrigues analisa
boa parte das caricaturas que a cultura branca produziu – e
ainda (re)produz – sobre nós: os místicos pretos velhos; a mãe
preta; o negão; o malandro; o favelado; a mulata boazuda; a musa; o afro-baiano
e alguns outros exemplos tão facilmente reconhecíveis atualmente.
O autor também menciona o(a) negro(a)
revoltado(a) e o crioulo doido. Sendo estes os referenciais mais
abomináveis num sistema de supremacia branca por definirem pessoas negras que
não se sujeitam aos moldes impostos pela sociedade que os desumaniza.
Pessoas que podem vir a se tornarem mártires – outro arquétipo listado
pelo autor -, e encorajarem outras pessoas negras a romperem com o manual de bom
comportamento forçado desde as Casas Grandes. Ou seja, até os inconformados são
enquadrados pela perspectiva dos antigos senhores(as) de escravos. Afinal a
rebelião, a loucura e a raiva são consequências previsíveis de qualquer
opressão e, logo, precisam ser catalogadas na tentativa de identificar e
controlar a ameaça representada pelos desgarrados.
Porém o que sempre me choca é a
persistência dos negros d’alma
branca. Nobres selvagens que se orgulham de sua
condição e se esforçam para serem bem-quistos na mais alta estimação. Pessoas
negras que não somente aceitam a subjugação racista como também se contentam
com qualquer migalha de dignidade e aceitação concedida por pessoas brancas.
Pessoas negras que se tornam palhaças e passam a ser as
primeiras a fazerem piadas racistas entre pessoas brancas para se sentirem
responsáveis pelo escárnio e não vitimas dele. Pessoas negras, que em qualquer
debate sobre racismo se desesperam em socorrer a opinião de pessoas brancas.
Pessoas negras que são contra a luta anti-racista, mas que, curiosamente,
aprenderam a ler e escrever, estudaram formalmente em alguma instituição,
(teoricamente) possuem direitos perante a lei e desfrutam de alguma independência
da antiga Casa Grande. Digo “alguma” porque a escravização não foi apenas
física, mas principalmente mental.
O racismo não prejudica somente quem
sonha com um futuro sem rótulos, desigualdades e opressão. Não afeta só os
militantes “vitimistas”. Assim como pessoas brancas são racistas independente
da repulsa que possa sentir ao sistema, toda pessoa negra é impactada
danosamente por ele. Nada importa se você saúda as atuais chicotadas com
bom humor e perseverança. O racista jamais ataca indivíduos, mas sempre a
coletividade de pessoas que compartilham os traços fenotípicos e genéticos
indesejados.
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Sendo assim, tanto faz se você rejeite
o samba, o reggae e o hip hop, quando estes ritmos tocarem pessoas brancas
esperarão que você as entretenha dançando. Repetir o mantra “somos todos
iguais” não impedirá que policiais e seguranças te tratem de maneira discriminatória.
Acreditar que com esforço “todos somos capazes das mesmas conquistas” não
garante que um branco menos qualificado que você não será o escolhido para uma
vaga de emprego com uma oferta salarial maior do que a que lhe foi oferecida.
Assim como casar com uma pessoa branca nunca impediu jogador de futebol algum
de ser chamado de “macaco” por um estádio lotado — tanto em Reais quanto em
Euros —, aceitar ser hiperssexualizado(a) não fará como que parceiros brancos
prefiram apresentar você aos amigos e não seus nudes. Optar por não
se ofender com as piadas racistas não impedirá que seus filhos um dia voltem
chorando pra casa por ouvirem as mesmas gracinhas. Clarear a
família tampouco garantirá que não te confundam com a babá ou sequestrador dos
seus próprios filhos. Ser contra o movimento negro não entrará em questão
quando alguém suspeitar que você não é o proprietário do carro ou da casa
comprados com o seu suor.
Como bem colocou Bito Santos: enquanto você tenta provar que vai
dar certo – que não vai entortar – e assegurar a si e aos outros de que é um
bom negro, todas as pessoas brancas simplesmente nascem melhores e livres do
encargo de terem que atestarem o seu valor. Pois, caso não tenha ficado
evidente, esse seu esforço em ser um negro exemplar demonstra
a sua familiaridade com as estruturas racistas que você insiste em não perceber
e contestar.
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